sábado, março 15, 2008

Portifólio II - O dadaísmo de Majeca

Com paixão e inteligência Angélica Angelucci criou "Walkiriana", um espetáculo que traz repercussões dadaístas, tanto na forma quanto no desencanto com a realidade do mundo contemporâneo.Ela nasceu há cinco mil anos e, antes de se tornar mensageira de Odin, viveu o esplendor do Egito na corte do Faraó, seu pai. Honra Odin assegurando odiar brigas, mas amar a guerra; também o honra ao cultuar a sabedoria no século das luzes. Iluminista iluminada, acredita-se. Íntima de Voltaire, próxima de Robespierre. Andou pela Bastilha, quando a guilhotina fazia chover cabeças em Paris. Talvez tenha sido nessa época que se tornou maestra. Isto porque, na sua voracidade de saber e de viver, descobriu que a música compartilha no cérebro humano o mesmo mocó da sexualidade. E nesses tempos de revoluções e melodramas, nasceu o romantismo, no qual o amor fatalmente tem final infeliz, não dá certo, mas dá sempre uma ópera!
Em performance apaixonada Angélica Angelucci cria um espetáculo inteligente e amargamente divertido.
Esse enredo, configurado no limite da alta filosofia, com o dadaísmo e o escracho é que Angélica Angelucci, a Majeca, desenvolveu em "Walkiriana", uma tragicomédia em quatro regências. Não é obra merecedora de aplausos irrestritos, é verdade. Mas está longe de ser a bobagem que algum desavisado possa ver a custa de seu olhar desatento.

A trajetória dessa fantástica mulher milenar (que em longevidade supera a Orlando da Virginia Wolf) pode – creio mesmo que deve – ser entendido como uma visão dadá do mundo contemporâneo. Seu relato de vida é recorrente, tanto geográfica quanto histórica e musicalmente. Como a criança que não separa a fantasia da realidade e as opera com a imaginação, Majeca conduz sua Walkiriana por terras e mares. Não se peja em misturar Wagner, Mozart e Villa-Lobos a sambistas e forrozeiros. Nem Nietzsche (que andou lhe confidenciando coisas em certo período) a Paulo Coelho. Nós, pobres (ou privilegiados?) habitantes do terceiro milênio, somos a soma de tudo o que foi, de tudo o que aconteceu e formatou nossa humanidade.

Como uma walkiria, recolhendo nos campos de batalha os heróis tombados, ela sofre também o impacto da tragédia – e nisso está a sátira ou a carnavalização realizada por Majeca – perdendo primeiro o braço esquerdo, numa das guerras do século 19, e depois o direito, já na 2ª Guerra Mundial. Cotó de um ou dos dois braços, não importa, a maestra continua a reger seu concerto metafísico pelo tempo afora. Um retrato grotesco da cultura ocidental que hoje, absolutamente aviltada pelas pulsões e compulsões consumistas, perdeu o senso de valor espiritual. Mas não manifesta a crítica com o dedo em riste (até porque com a perda dos braços, faltam-lhe as mãos e, conseqüentemente, os dedos), mas com o próprio corpo colocado em sacrifício.

A idéia da obra é da própria Angélica Angelucci, que teve a colaboração de Pepê Mata Machado para a finalização do texto, de Lulu Pavarin, na direção cênica e de Wilson Surkorski na criação de música original. E na realidade todos esses artistas estão com ela em cena, apoiando-a em sua evolução milimetricamente destrambelhada. Será difícil definir por escolas estéticas ou pelas vertentes em moda nos nossos palcos essa manifestação dadaísta de Majeca, mas é empolgante vê-la evoluindo em cena com toda paixão, com uma divina vontade de dizer algo sobre ela mesma, sobre nosso tempo...

Sebastião Milaré - www.antaprofana.com.br

Walkiriana nem sempre foi maestrina. Uma antiqüíssima mulher vivendo inúmeras venturas, peripécias e tragédias, sem se abalar, percorrendo diferentes momentos históricos e linguagens estéticas; afirma ser uma iluminada iluminista.

Walkiriana - uma tragicomédia em 4 regências;
texto: Angélica Angelucci, Pepê Mata Machado; direção: Lulu Pavarim;
foto: Flambart; design gráfico: Carolina de Carvalho
Temporada Centro Cultural São Paulo - 28/03 a 27/04