segunda-feira, fevereiro 02, 2009

`A Iemanjá...

A Iara, de João Guimarães Rosa

Bem abaixo das colinas de ondas verdes, onde o sol se refrata em agulhas frias, descem todas as sereias dos mares e dos rios, irreais e lentas, como espectros de vidro, para os palácios de madrépora de Anfitrite, em vale côncavo, transparente e verde, num recanto abissal, como uma taça cheia, entre bosques e sargaços, espumosos, e rígidos jardins geométricos de coral...
Por entre os delfins, sentinelas de Possêidon, afundam, suspensas, soltas, como grandes algas, carregando os jovens afogados: Ondinas das praias, flexosas, Nixes da água furtacor do Elba, Havefrus do Sund e Russalkas do Don... Loreley traz no esmalte doce dos olhos duas gotas do Reno... E danaides Laboriosas se desviam dos cardumes De Nereidas, que imergem, ondulando as caudas palhetadas dos seus vestidos justos de lamé...
Mas a Iara não veio!...
Mas a Iara não vem!...
Porque Iara tem sangue, porque a Iara tem carne, sangue de mulher moça da terra vermelha, carne de peixe da água gorda do rio...
Iara de olhos verdes de muiraquitã, cintura pra cima de cunhantã cintura pra baixo de tucunaré...que veio, dormindo, Purus abaixo, filha do filho do rei dos peixes como uma índia branca cuchinauá...
Lá bem pra trás da boca aberta do rio, onde solta seus diaboso bicho feroz da pororoca, ela ficou, cheia de medo, brasiliana, tapuia, morena, Tão orgulhosa, Que não quer ser desprezada pelas outras...
E a Iara é preguiçosa, tão preguiçosa, que não canta mais as trovas lentas em nhheengatu :
-Iquê, ianê retama icu, Paraná inhana tumassaua quitó... Nem mais se esforça em seduzir o canoeiro mura ou o seringueiro, meio vestida com gaze das águas, na renda trançada dos igarapés...E eu tenho de chorar:
- Enfeitiça-me ó Iara,que eu vim aqui pra me deixar vencer...
Mas custa-me encontrá-la, e só à noite sem bordas dessas terras grandes, quando a lua e as ninféias desabrocham soltas, posso beijá-la, nua, dormida, esguia, bronzeada, oleosa, na concha carmesim de uma vitória-régia, tomando o banho longo de perfume e luar...
Foto: Esxposição 'My voice, my life' - de Marcela Haddad - em Londres.
Iemanjá - Todos os anos, no dia 2 de fevereiro, milhares de praticantes do candomblé se vestem de branco e se dirigem ao mar, levando as suas oferendas para Iemanjá. Ao entardecer, em Salvador, homens levam embarcações com flores e oferendas à rainha do mar.

3 comentários:

Anônimo disse...

wow foi você que escreveu o texto acima? é lindo de morrer.
Até ler Cidade de Deus nem sequer tinha ouvido de candomblé e iemanjá, mas acho bem que se guardem esta antiga religião, tal como as outras trazidas da áfrica.

carol disse...

Oi Clarice! O texto é de um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos! Vai nesse sítio que vc encontra algumas informações:
http://www.releituras.com/guimarosa_bio.asp
Se vc quiser, posso te enviar algum livro para que conheça melhor...
A cultura do Candomblé também é incrível, vale pesquisar... Aliás, vale vc vir conhecer o Brasil! Está feito o convite! beijos

Anônimo disse...

oi, obrigada pelo link, não conheço esse escritor mas impressionou-me com o fragmento do seu post.
no que diz respeito ao livro, agradeço imenso; até aceitava se não estivéssemos tão longe e os portes não fossem tão caros (mas vou procurar nas bibliotecas, é uma ideia). OBRIGADA
obrigada também pelo convite, adorava ir ao Brasil, nem imagina, mas ainda tenho que vender uns bons milhares de anéis para conseguir ir aí :) e passear dum lado para outro.
já pesquisei na internet o candomblé quando andei a traduzir cidade de deus, o livro. até encontrei um blogue sobre candomblé.
fique bem, obrigada pela simpatia.